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Truques de matemática

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Uma curta viagem pela História da Matemática em Portugal



por Teresa Monteiro*

(*Área Departamental de Matemática, Escola Superior de Tecnologia e Gestão, Instituto Politécnico de Beja)


Resumo: Uma outra face do estudo da matemática, à qual nem sempre é possível dedicar-lhe o tempo necessário e merecido, é a história da matemática e o percurso científico-pedagógico e humano de grandes personalidades a ela ligados. Por vezes conhecem-se melhor autores da antiguidade clássica que autores actuais, por vezes conhecem-se melhor autores de nacionalidades estrangeiras que autores de nacionalidade portuguesa... Nestes preciosos minutos, façamos uma curta viagem pela história da matemática em Portugal, com destino na vida e obra de Bento de Jesus Caraça, alentejano, nascido a 18 de Abril de 1901 em Vila Viçosa.

Porque a história da matemática tem "beleza que deslumbra, engenho que encanta e grandeza que assombra..." (Francisco Gomes Teixeira).


Palavras chave: história, matemática, Portugal, homenagem, B. J. Caraça.


1. INTRODUÇÃO

A matemática é uma ciência tão antiga como a humanidade. Neste momento, constitui um corpo de conhecimento que se desenvolve há mais de 5000 anos… com os seus altos e baixos e longe de chegar ao fim. Há autores que afirmam que no passado século XX se criou tanta matemática como em todo o tempo que está para trás, mas tal não teria sido possível se o percurso anterior não tivesse sido percorrido com o trabalho e brilhantismo de tantas pessoas a ela ligadas.

O estudo e conhecimento da história da matemática é sem dúvida importante. Para além de termos a obrigação de prestar homenagem a todos aqueles que contribuíram para o seu desenvolvimento e actuais conhecimentos, muitas vezes ajuda a compreensão e interiorização de alguns conceitos que hoje estudamos depois de arrumados, organizados e formalizados.

Como afirmou José Sebastião e Silva (1914 – 1972), natural da vila alentejana de Mértola, “um ensino que não estimule o espírito e que pelo contrário o obstrua com as clássicas matérias para exame só contribui para produzir máquinas em vez de homens”. Ora a história da matemática assume um papel importante no estímulo desse espírito dos alunos e ajuda a que estes se apercebam das ideias que estiveram por trás de certas teorias e resultados, quando estes são apresentados na forma de teoremas já acabados. Já agora, cabe aqui salientar que ainda existem muitas perguntas formuladas há séculos e que continuam à espera de respostas. Um desses domínios é a teoria dos números primos… uns “simples” números naturais!…

Já chega de preliminares, vamos então ao assunto de hoje: uma curta viagem pela história da matemática em Portugal.


2. BREVE HISTÓRIA DA MATEMÁTICA EM PORTUGAL

A fundação da nação dá-se em pleno século XII pela mão de D. Afonso Henriques. Nesta época a Península Ibérica estava ocupada por cristãos e por árabes. A ciência, em particular a matemática, estava no lado dos árabes…

Diz-se que o que caracterizava a matemática dos gregos era a sua pureza geométrica, o que caracterizava a matemática indiana era a audácia na álgebra e a matemática árabe seria caracterizada pela junção das duas qualidades anteriores. A ciência dos últimos entrou na Europa quer pela Península Ibérica, quer por Itália, onde no século XIII, a álgebra heleno-indiana foi introduzida por Leonardo Fibonnacci, de Pisa, que estudou entre os árabes em viagens que realizou ao longo do Mediterrâneo.

Relativamente às Espanhas, um dos centros mais importantes da cultura intelectual árabe da época foi a Escola de Córdoba, enquanto capital do império de Abd Al-Rahman III (891-961), oitavo emir e primeiro califa de Córdoba. Um outro centro importante das escolas andaluzas foi a cidade de Toledo conquistando o título de Mais Alto Centro Medieval de Investigação Astronómica.

Sob o pretexto da evangelização e com a intervenção das cruzadas, a Santa Sé promoveu violentas lutas entre cristãos e não cristãos. Ao perderem, os sarracenos foram obrigados a recuar para terras de África, legando-nos a sua ciência que por sua vez se terá alimentado da cultura e ciência do povo heleno…

O espírito filosófico das ciências da antiguidade foi perdendo peso na passagem dos gregos para os árabes e dos árabes para os judeus, quando os últimos foram invadidos pelos mouros e fugiram para as Espanhas. Também os judeus espalharam riquezas culturais e científicas por toda a nossa Península, que tinham recebido dos árabes, até serem expulsos de Espanha por Isabel-a-Católica e de Portugal por D. Manuel I (Alcochete, 1469 – Lisboa, 1521), duque de Beja, décimo quarto rei de Portugal, pai de D. João III (1502 – 1557, décimo quinto rei de Portugal) e grande impulsionador da expansão ultramarina.

A História da Matemática em Portugal pode ser dividida em cinco períodos:

I. De D. Afonso Henriques até D. João II (1455 – 1495) – período da formação.
II. Da morte de D. João II até fins do século XVI – período do brilho.
III. Do século XVII até meados do século XVIII – período da pobreza.
IV. De meados do século XVIII até meados do século XIX – reorganização da Universidade de Coimbra pelo Marquês de Pombal e fundação da Academia das Ciências de Lisboa.
V. De meados do século XIX até ao século XX.

2.1. I Período (séculos XII-XV)

Durante a dinastia afonsina, se é verdade que o povo se amotinou contra D. Fernando e Leonor Teles, não é menos verdade que o mesmo povo aclamou e defendeu com heroísmo o Mestre de Aviz. Foi ainda este povo que mais tarde haveria de surpreender o resto do mundo, quando bem dirigido pelo poder vigente. Não se conhecem registos do estudo da matemática em Portugal neste período, sabe-se simplesmente que se usava a numeração romana para contar…

Os grandes acontecimentos deste período terão sido:

- A formação e organização de Portugal.
- O nascimento da Universidade de Coimbra em 1290, no reinado de D. Dinis.
- O nascimento da marinha portuguesa.
- A preparação dos alicerces para o desenvolvimento do conhecimento científico em Portugal.

Enquanto a nossa nação estava com os olhos postos no mar, a vizinha Espanha estava com os olhos postos no céu…

2.2. II Período (séculos XV-XVI)

Talvez o período melhor estudado da história de Portugal e sem dúvida o período do nosso orgulho… O responsável pelo poder era D. Henrique, o Navegador e o fundador da estação naval de Sagres. Dos muitos acontecimentos ocorridos, podem salientar-se os seguintes:

- Início das navegações em alto mar e desenvolvimento de elementos científicos que permitiram tais ousadias: astrolábio, nónio, quadrante, …
- Descoberta da América por Cristovão Colombo.
- Descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama.
- Descoberta do Brasil por Pedro Álvares Cabral.
- Bartolomeu Dias defronta-se com o Cabo da Boa Esperança.
- Pedro Nunes (1502 – 1578) cria e desenvolve inúmeros ramos da ciência que tem reflexos não só em Portugal como no resto do mundo. De facto, Pedro Nunes, judeu, contemporâneo de Luís de Camões (1524 – 1580), foi cosmógrafo, físico, cosmólogo, geómetra, algebrista e médico. Criou uma nova graduação para o astrolábio que permitia avaliar a altura e distância dos astros em minutos e segundos. Se não inventou, pelo menos aperfeiçoou o nónio (instrumento para avaliar grandezas lineares ou angulares). Inventou um anel graduado em graus, 90 partes iguais, mais eficiente que o quadrante que estava dividido em 45 partes, para determinar latitudes no mar. Nasceu em Alcácer-do-Sal, ensinou D. Sebastião (1554 – 1578, neto de D. João III e décimo sexto rei de Portugal) e morreu logo após a derrota deste, nos areais de Alcácer-Quibir em 4 de Agosto de 1578. A sua obra científica e pedagógica eleva Portugal ao ponto mais alto do conhecimento matemático na Península Ibérica. O seu mérito foi reconhecido ainda em vida pelos monarcas portugueses.
- Portugal cai como nação e passa para o domínio de Castela.

2.3. III Período (séculos XVII-XVIII)

Período de grande actividade na Europa que não foi acompanhada no nosso país. Depois da tragédia de Alcácer-Quibir, sobe ao trono D. Henrique, um inquisidor, um fanático, um decrépito, … uma sombra. Para ajudar a desgraça, sucedem-lhe no trono português três reis castelhanos. Com a revolução de 1640, o trono é ocupado pelo português, D. João IV. Segue-lhe Afonso VI, um louco, depois Pedro II, um imoral, e por fim D. João V, monarca faustoso e pródigo que legou ao seu sucessor D. José I uma nação arruinada.

Inumeram-se em seguida algumas individualidades estrangeiras implicadas em grandes momentos do conhecimento físico-matemático europeu.

· Viete, criou a álgebra moderna.
· Kepler e Galileu, fizeram descobertas físico-matemáticas.
· Descartes e Fermat, inventaram a Geometria Analítica.
· Newton e Leibnitz, inventaram o cálculo dos infinitamente pequenos.
· Newton, descobriu a Mecânica Racional.
· Desenvolveram-se os trabalhos de Mac-Laurin, Bernoullis, D’ Alembert, Euler, Lagrange, Laplace…

O período de decadência em Portugal poderá ser o reflexo dos factos seguintes, decorridos ao longo do período anterior:

- Êxodo dos judeus no tempo de D. Manuel I.
- Introdução no país do Tribunal do Santo Ofício por D. João III.
- Entrega por D. João III de todo o ensino nacional, incluindo o universitário, ao conservadorismo da Companhia de Jesus recentemente fundada, que não deixou introduzir no país as mais recentes descobertas científicas.
- Descrédito da astrologia.
- Decadência da navegação portuguesa.

2.4. IV Período (séculos XVIII-XIX)

Poucos anos depois de D. José I ter subido ao poder, Portugal está próspero, organizado e disciplinado. A razão deste milagre deve-se ao Ministro Sebastião José de Carvalho, o Marquês de Pombal. Porém, nem tudo o que é belo acaba bem… Morto D. José I, em 1777, o Marquês de Pombal é deposto do poder por D. Maria I, mas a sua obra fica.

Os acontecimentos chave para a matemática foram:

- 1772 – Fundação de uma Faculdade de Matemática na Universidade de Coimbra.
- 1779 – Fundação da Academia das Ciências de Lisboa no reinado de D. Maria I.
- Vida e obra do matemático Monteiro da Rocha (1734, Canavezes – 1819, Ribamar), determinou as órbitas parabólicas dos cometas e previu eclipses do Sol.
- Vida e obra do matemático e poeta José Anastácio da Cunha (1744, Lisboa – 1787, Real Casa Pia do Castelo de São Jorge), desenvolveu e foi pioneiro em alguns aspectos da teoria das séries e da teoria dos números irracionais. Vítima da Inquisição num Auto de Fé do Tribunal do Santo Ofício em 1778, foi acusado de ser racionalista e condenado a três anos de prisão, seguidos de cinco anos de degredo em Évora, não tendo maior pena por não ter feito propaganda das suas ideias.

2.5. V Período (séculos XIX-XX)

Ao abrir o século XIX, Napoleão Bonaparte estava no auge da sua glória. A situação política internacional portuguesa estava perigosa, como se confirmou com a guerra do nosso país contra França e Espanha, coligadas e a perda de Olivença. Napoleão não desistiu à primeira e invadiu Portugal mais duas vezes, mas sem êxito. Na terceira e última invasão juntou-se a nós um exército inglês. Bonaparte pretendia vencer economicamente a Inglaterra e esta temia um bloqueio continental.

No século XX, viveu-se a ditadura de Salazar e de Marcelo Caetano. Existem muitas perseguições, exílios e outros atentados humanos e científicos que em nada terão ajudado o bem estar das pessoas e o bom desenvolvimento da ciência em Portugal.

Neste período destacam-se os matemáticos:

- Daniel Augusto da Silva (16 de Maio 1814 – 6 de Outubro 1878), natural de Lisboa. Trabalhou na teoria dos binários (forças iguais, paralelas e de sentidos opostos) e outras teorias da Mecânica e teoria dos números. Foi contemporâneo de Mobius e Darboux.
- Bento de Jesus Caraça (18 de Abril 1901 – 25 de Junho 1948), natural da vila alentejana de Vila Viçosa.
- Ruy Luís Gomes (1905 – 1984), antigo Reitor da Universidade do Porto. Trabalhou conjuntamente com António Aniceto Monteiro. Foi demitido de professor catedrático da Universidade do Porto, perseguido pela PIDE e várias vezes preso. Acabou por abandonar Portugal em 1958 rumo à Argentina, onde estava António Monteiro, seguindo-se o Brasil, Recife, onde se encontravam Zaluar Nunes, Pereira Gomes e José Morgado. Após o 25 de Abril de 1974, regressa a Portugal e é aclamado Reitor da Universidade do Porto, 27 anos depois de ter sido expulso do ensino universitário.
- António Aniceto Monteiro (1907 – 1980), natural de Mossâmedes, Angola, é afastado pela ditadura em 1945 primeiro para o Brasil, depois para a Argentina. Regressa a Portugal ao fim de 32 anos, em 1977, por um curto período de dois anos, a convite do Instituto Nacional de Investigação Científica e volta para a Argentina onde acaba por falecer. É um dos fundadores da Gazeta da Matemática (1940), da Sociedade Portuguesa de Matemática (1940) e da Junta de Investigação de Matemática no Porto (1943). Contemporâneo de Albert Einstein, foi recomendado por este à Faculdade de Filosofia do Brasil, Rio de Janeiro, onde desenvolveu notáveis iniciativas. Por pressões da Embaixada de Portugal, viu-se obrigado a abandonar o Brasil e caminhar rumo à Argentina. Os seus mais de cinquenta trabalhos são na área da álgebra e da lógica.
- José Sebastião e Silva (12 de Dezembro 1914 – 25 de Maio 1972), natural da vila alentejana de Mértola. Escreveu duas teses para provas de doutoramento, uma de Lógica Matemática e outra de Análise Funcional. A primeira totalmente concebida num período de quatro anos em Itália durante a II Guerra Mundial, a segunda essencialmente escrita no mesmo período, surgiu por receio da anterior não ser aceite em Portugal. Para além de investigador, foi um ilustre pedagogo.


3. Homenagem a Bento de Jesus Caraça

“O primeiro divulgador científico português”, título de um artigo no jornal O Público .

Cronologia

1901 Nasce a 18 de Abril em Vila Viçosa, filho de trabalhadores rurais.
1902 Vai viver para Montoito com a família.
1906 Aprende as primeiras letras pela Cartilha Maternal.
1911 Termina a escola primária.
1911-13 Inicia os estudos liceais em Santarém.
1913-18 Conclui os estudos liceais em Lisboa.
1918 Inscreve-se no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (actual
ISEG), onde se encontra uma sua célebre frase “Se não receio o erro é porque
estou sempre disposto a corrigi-lo” elogiando a virtude da dúvida.
1918 Atinge-lhe uma doença reumática com implicações cardíacas.
1919 É convidado para segundo assistente do professor catedrático de matemática, Mira Fernandes.
1923 Obtém o grau de licenciado.
1924 É nomeado 1º assistente.
1927 É convidado para professor extraordinário.
1929 É nomeado professor catedrático de Matemáticas Superiores.
1933 Apresenta a conferência “A Cultura Integral do Indivíduo”.
1938 Cria o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas, actual ISEG, inaugurando o primeiro centro de investigação teórica universitária.
1940 É co-fundador da Gazeta de Matemática.
1941 Funda e dirige a Biblioteca Cosmos e é nomeado presidente da direcção da Universidade Popular Portuguesa.
1943 É eleito presidente da direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática, fundada três anos antes.
1944 Participa na reunião fundadora do MUNAF (Movimento de Unidade Anti- Fascista).
1945 Publica a obra “Conceitos Fundamentais da Matemática” e participa na comissão executiva do MUD (Movimento de Unidade Democrática).
1946 É expulso da cátedra universitária e fica proibido de exercer a docência, a 10 de Outubro, por determinação do Conselho de Ministros. Nasce o seu filho único, João Caraça.
1948 Deixa-nos para sempre no dia 25 de Junho vítima de doença cardíaca, em Lisboa, Campo de Ourique.

REFERÊNCIAS

[1] Almeida, P., António Aniceto Ribeiro Monteiro, Sociedade Portuguesa de Matemática, 198?.

[2] Boll, M., As etapas da matemática, Colecção Saber, Europa América.

[3] Caraça, J., Cem anos pela fraternidade in Jornal de Letras, 18 de Abril de 2001.

[4] Ferreira, J. C., Alguns aspectos da vida e obra de José Sebastião e Silva, Sociedade Portuguesa de Matemática, Lisboa, 1988.

[5] Katz, V. J., A history of mathematics – An introdution, Addison Wesley, 1998.

[6] Matrins, R., O primeiro divulgador científico português in Público, 18 de Abril de 2001.

[7] Melo, A., O homem das "Benditas Ilusões" in Público, 18 de Abril de 2001.

[8] Melo, A., A ciência não pode ser asséptica in Público, 18 de Abril de 2001.

[9] Melo, A., "Caraça tem razão" in Público, 18 de Abril de 2001.

[10] Morgado, J., Ruy Luís Gomes, Sociedade Portuguesa de Matemática, 1988.

[11] Neves, H., Um fragmento sobre Bento Caraça in Público, 18 de Abril de 2001.

[12] Neves, H., Um homem que abençoava as ilusões in Jornal de Letras, 18 de Abril de 2001.
[13]

[14] Oliveira, J. T., O essencial sobre a história das matemáticas em Portugal, INCM, 1989.

[15] Teixeira, F. G., História das matemáticas em Portugal, Academia das Ciências de Lisboa, Biblioteca de Altos Estudos, Lisboa, 1934.

[16] Weisstein, E. W., CRC Concise Encyclopedia of Mathematics, CRC Press, 1999.

1 comentário:

Stalin Uesley da Silva disse...

Excelente artigo, pena que em cima tem um sobre fractais que menciona Mandelbrot, figurinha com quem realmente não simpatizo (as idéias dele sobre metodologia da ciência sãao ridículas e ele usou muito material sem dar o devido crédito).

Excelente blog!